Klimt

2 de maio de 2008

Intermitências

A minha avó está doente, muito doente, na recta final da vida. Num caminho doloroso, penoso, daqueles que não merece a pena percorrer. O corpo está a morrer, a apodrecer, no sentido lato da palavra. A minha avó, muito lúcida de cabeça sofre com as dores horríveis de uns pés que apodrecem. Aos 94 anos o corpo decidiu descansar, apesar de o coração e a cabeça dela se encontrarem de excelente saúde. Não percebo porque tem de ser assim. Porque temos de sofrer quando menos merecemos sofrer. Não sei dizer o que sinto quando vejo a minha avó a emagrecer, a não comer (a medicação é forte e ataca o estômago, o que a faz vomitar e não conseguir comer), a ter dores horríveis. Não vos sei dizer o que sinto quando vejo os pés inchados, negros (mesmo negros), em ferida e a cheirar a podre. A descrição é crua e nojenta, mas é assim. Os médicos decidiram não cortar porque ela não sobrevive à operação. Decidiram não a pôr a soro porque as veias podem arrebentar. Foi condenada a viver até o corpo se deteriorar tanto que não aguente. Até lá sofre. Sente-se a morrer. Neste momentos em que sinto que vou vomitar de nojo, de pena, de dor, de amor, só quero que ela morra. Que feche os olhos e se apague sem mais dor. Nestes momentos queria que a eutanásia não fosse proibida e que se pudesse rapidamente atenuar o sofrimento dela. Queria ter algum poder, mas nada posso. Não sei sequer se seria capaz de o fazer, mas talvez o meu amor o permitisse fazer, ou pedir a alguém que o faça. A minha avó é a imagem de força, de ruralidade, nunca teve aquele lado feminino da casa, do carinho, da imagem. É a mulher do campo, só o trabalho interessava e sempre a vi trabalhar. Nunca foi uma mãe carinhosa, mas foi uma avó atenciosa, cheia de histórias. foi a única avó que conheci. Os cheiros da casa, das comidas, os campos, as luzes de fim de tarde e princípio da manhã, a exigência, o autoritarismo, a religiosidade, o trabalho de campo, as mãos na terra, as cores, tudo o que me liga ao norte do país, aquela casa rural e aquele modo de vida rural me ligam a ela. Porque eu também sou aquilo tudo. As minhas origens estão ali.
Agora resta-nos acompanhar e aguardar. Não fazer planos. Viver o dia a dia e esperar por aquele dia que eu espero que seja breve. A minha despedida está feita. Agora resta-me deixá-la ir. Todos estão a ir. Somos cada vez menos e os que ficam estão cada vez mais velhinhos. Não consigo viver sem a ideia de morte presente na minha vida. Não consigo sossegar. Estou cada vez mais inquieta. A vida provoca-me e altera-me.

2 comentários:

carolina disse...

é numa torrente de lágrimas, que te digo que admiro esse altruísmo. a tendência é sempre a do egoísmo, a de pensarmos na nossa dor quando alguém parte.

Anônimo disse...

É numa torrente de amor que te digo que é impossível sentir algo diferente ao ver o sofrimento e ao ver a carne a apodrecer. Não consigo sequer pensar que ela pode continuar assim.

"Quanto mais claro/ Vejo em mim, mais escuro é o que vejo./ Quanto mais compreendo/ Menos me sinto compreendido./ Ó horror paradoxal deste pensar... " Fernando Pessoa