Klimt

14 de maio de 2007

Renasce a esperança

Acordo da pior noite da minha vida. Olhos inchados. Cabeça pesada e com muitas dores. Levanto-me e sinto-me pesada e lenta. Não me apetece tomar banho, nem vestir, nem pentear. Não quero rotinas. Não me apetece. Estou enjoada e não quero comer. A minha mãe continua a chorar e a soluçar.Faltam-lhe as forças e a esperança mas nunca a coragem.
Entro no carro. Continuo sem conseguir ligar o rádio. A banda sonora é o silêncio ou as nossas palavras trocadas.
Já sabiamos que não podiamos entrar mas às 9h lá estávamos. Falas com a médica cardiologista. Choras. Mal te percebo. Faço a "tradução" e acrescento as coisas que esqueces ou não consegues pronunciar.Ela liga para as urgências e diz que nada pode fazer porque não é cardiologia mas que ele está um pouco melhor. Descemos para o ver meio escondidas porque não podemos estar ali. Não nos mostram obstáculos. Falamos com a enfermeira. Está a melhorar. Podem só dar um bj. Entramos. Ele ri, fala. Pede um bj. Está tudo a correr bem, digo-lhe. Tenho de sair. Até logo. Ele diz adeus com a mão. Lembro-me do arrumador dessa manhã que ao me indicar o lugar sem parquímetro diz-me que estou cheia de sorte. Eu respondo que bem preciso, a chorar. Ele lê-me os olhos. Deseja-me um "bom dia madame" e sorri.Diz que não preciso de lhe dar nada. Apetecia-me abraçá-lo e perguntar-lhe que faz ali. Aquela delicadeza derruba-me.Sem dúvida que estava cheia de sorte. O pai está melhor e essa é a minha sorte. O meu dia renasce de uma tristeza e dor que não consigo relatar por palavras. A minha sorte muda ali. Penso. Acredito. Um dia de cada vez. No regresso o arrumador pergunta se já me vou embora. Digo que sim já a sorrir e ele diz-me "eu não lhe disse que estava com sorte?". Sorrio e agradeço. "Um bom dia madame". Penso novamente no que faz ele ali.
Deixo a mãe em casa digo-lhe para dormir e descansar. Vou a Lisboa levantar o B.I dela que caducou. Vou no comboio a mandar sms. Ligam-me. Saio no C.Sodré e vou a pé para os Restauradores sempre a falar ao telemóvel. Chego. A mãe não assinou o documento para eu levantar o B.I. Ligo-lhe. Diz para assinar por ela. LOL!Falsifico a assinatura e consigo levantar o B.I. Regresso novamente a pé. Liga-me a mulher do meu director que é enfermeira. Encoraja-me. Nunca pensei que ligasse.Assim vale a pena. Sinto o calor do sol e a brisa fresca que sopra. As pessoas passam. Ninguém se vê. Na montra da livraria vejo a capa de um livro com o título "Smile". Comovo-me. Interpreto tudo como sinais. Ao fim destes dias queria tanto estar sozinha. Sentir-me assim sozinha e conseguir respirar e pensar. Espero que as horas passem rápido para o ver. Chego a casa. Continuo sem conseguir comer. Tenho de ir com a mãe ao centro de saúde para a médica de família ver as análises dela. Vamos buscar os meus tios à estação e vamos para o Hospital. Chega o Filipe. A mãe quer que eles entrem primeiro. Digo que não. Não quero que aconteça o mesmo que ontem. Entras tu primeiro e vês como está. Ficamos ansiosos e nervosos à espera que ela saia, à espera de lhe ler no rosto a resposta à nossa angústia. Cruzo as mãos e tenho pena de não ter fé. Ela sai a sorrir e a chorar. Não consigo falar. Pergunto se está OK com a mão. Diz que sim. Está a falar e a fazer perguntas.Disse que eles são maus porque lhe prenderam as mãos e os pés e o magoaram. "Estes cabrões são maus", diz. Rio e respiro fundo. Eles entram e saiem todos satisfeitos. Eu sou a última. Ele está bem. Fala, faz perguntas, diz o que almoçou e lanchou, pergunta pelos tios, diz o código do MB e faz queixinhas dos enfermeiros. Fala com o lado esquerdo um pouco afectado e a barba destes dias por fazer.Fala na tia com raiva e digo que não quero falar mais nesse assunto. Assunto encerrado, pensa em ti e não te enerves.Mudo o rumo da conversa. Fico ali até á última. Saio e digo à mãe: "estás a ver?"temos de pensar positivo". A Eliana vai ter ao hospital para lhe dar os óculos e cadernos que ficaram no meu carro na sexta. Digo-lhe: "vês o meu sorriso?"Ela abraça-me forte, forte e diz que fica muito contente. Digo:"Pensei tanto no que me disseste..fechei tantas vezes os olhos e imaginei-o a sair do hospital pelos pés dele."Ela diz:"ainda bem, ainda bem que te conseguimos ajudar".Ela vai embora e eu desço a rampa a correr. Eles foram embora. A mãe aguarda para falar com a médica. Atendo mais uns telefonemas. A médica chega e vou para ao pé delas para ouvir. Está estável. Ainda fica mais 24h em observação no S.O. É melhor. Ainda é cedo para avaliar. Temos de aguardar mas está tudo a correr bem. Saímos com esperança. Digo à mãe que tenho fome. Apetece-me cereais de chocolate. Vamos para casa. Ligo pela primeira vez o computador. Apetece-me escrever.Há movimento na cozinha pela primeira vez desde estes dias. O telefone toca e já não há choro na resposta à chamada. "Ele está melhor", é a resposta. A mãe deita-se cedo. Adormece e dorme profundamente. Eu escrevo, escrevo. Há silêncio em casa. Não se ouve choros, nem soluçar, nem desespero.Deito-me tarde na cama deles. A mãe quase não me sente deitar.Renasce a esperança.Eu estou feliz. Nada mais me importa.

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"Quanto mais claro/ Vejo em mim, mais escuro é o que vejo./ Quanto mais compreendo/ Menos me sinto compreendido./ Ó horror paradoxal deste pensar... " Fernando Pessoa