Klimt

3 de abril de 2008

E lá fui eu apagar mais um fogo. Mãe a chorar porque a avó está com o pé negro. E lá vou eu imediatamente após comunicar à minha chefia a minha saída súbita.


Chego ao lar e a avó está realmente com o pé muito vermelho e inchado. E os dedinhos por baixo já estão negros. Alguma preocupação. Tio perturba um pouco a nossa atenção, mas não consegue desviar as atenções. Para ele não ficar sozinho, a minha mãe fica triste mas não vai. O meu pai também não precisa de ir, porque nestas coisas quem ajuda é a mãe e o meu pai não pode ficar sozinho com o meu tio, não vá o diabo tecê-las.


A ambulância chega, a simpatia dos bombeiros é comovente. Avó beija a neta e a neta arranca em direcção ao hospital para a avó a sentir presente.


Vejo-a entrar tão velhinha e desprotegida. Chamam-me. É a Maria João, perguntam. Sorrio e aceno com a cabeça. Sim, porque ela já estava a dizer o meu nome e a falar de mim. Está boa de cabeça a minha avó. Perguntam-me informações. Confirmo tudo com ela porque ela sabe responder. Não é diabética, não tem problema nenhum, teve apenas uma trombose há 3 anos, mas como não consegue andar sozinha porque já não tem equilíbrio, a circulação está a falhar. Médicos excelentes. Dizem que ela é muito querida. Querem uma segunda opinião. Temos sorte porque os médicos da vascular estão cá e vão observá-la. Suspeitam de vasculite. Saia com ela para não estar aqui fechada e depois chamamo-la. Lá nos chamam e o exame é feito. O problema não é falta de circulação na perna, mas no pé. Os pés estão a morrer. Mostro a medicação que ela está a tomar. O médico decide mudar a medicação e marcar uma consulta para daqui a 15 dias. Como ela tem 94 anos não vão operar e se a medicação não resultar, terão de cortar para não gangrenar. Isto é dito com alguma pena, mas com uma assertividade assutadora. Assolam-me um sem número de pensamentos. Os 94 anos da minha avó. A sua debilidade física mas a sua clareza mental. A genica da minha avó. Mulher trabalhadora do campo. Porque tem ela de passar por isto nesta idade? Sem pés, de cadeira de rodas, sem se poder mover mesmo. Sem a podermos levar tantas vezes a casa. O sofrimento da operação e da recuperação. Porque tem o Deus em que ela tanto acredita de a fazer passar por isto? Não poderá ela simplesmente não acordar um dia e ir de encontro ao seu Deus. Fiquei tão triste. Só me apetecia chorar e abraçá-la até ao fim. Não tenho esperança. Espero que se vá suavemente, sem mais sofrimento, sem se ver desfeita, sem ver pedaços dela, de um ela que já não existe.

2 comentários:

carolina disse...

a puta da vida às vezes é muito cruel.

Anônimo disse...

Podes crer, Carolina!
Tella

"Quanto mais claro/ Vejo em mim, mais escuro é o que vejo./ Quanto mais compreendo/ Menos me sinto compreendido./ Ó horror paradoxal deste pensar... " Fernando Pessoa